Data: 20/08/2010 - página A 12.
Ana Carolina Negri/Valor
As condições de funcionamento dos mercados de algumas das principais commodities brasileiras transformaram-se de forma impressionante nos últimos cinco anos. Soja, biocombustíveis, madeira, carne, algodão, óleo de palma estão entre os produtos cujos mercados passam a organizar-se de forma crescente com a participação de organizações não governamentais (ONGs) em seu interior.
Além da agropecuária, o Instituto Carvão Social é uma iniciativa compulsória que controla condições de trabalho na cadeia da siderurgia. A mudança é de mão dupla: as empresas e as associações empresariais passam a procurar parâmetros de julgamento de suas atividades que vão muito além do balanço contábil ou da remuneração dos acionistas. Isso supõe a formulação de vários indicadores como o uso de materiais e energia, o balanço de emissões de gases de efeito estufa e o conhecimento dos impactos do que fazem as firmas tanto sobre a biodiversidade como sobre as populações que se encontram ao longo de suas cadeias de valor. Por outro lado, as próprias ONGs também alteram seus procedimentos. Tornam-se protagonistas de negociações diretas com o setor privado, o que exige preparação técnica e um tipo de agenda quase ausente de seu horizonte até poucos anos atrás.
Um dos resultados dessa dupla mudança nas empresas e nas ONGs são iniciativas apoiadas na participação de atores sociais variados (“multistakeholders”) em mesas redondas internacionais com a ambição de chegar a padrões socioambientais capazes de interferir de forma decisiva na governança dos mercados. Benjamin Cashore, professor da Universidade de Yale, mostra que essa “governança não estatal dirigida pelo mercado” (“non state market driven governance”) vai muito além de uma atitude ocasional e oportunista, pois cria um conjunto de normas e valores aos quais os protagonistas (empresas, ONGs, organizações de consumidores e os próprios governos) aderem de forma crescente. Forma-se uma espécie de complexo “ONGs/indústria” exprimindo um novo padrão de regulação privada transnacional.
A cadeia de demandas e de garantias embutidas na licença para operar das empresas vai muito além do que é negociado habitualmente nas cadeias de suprimento. Não se trata apenas da acusação direta a alguns setores e empresas com condutas especialmente danosas. Muito mais que isso, trata-se de organizar os mercados com base na tentativa de expor publicamente seus principais impactos socioambientais.
Um dos mais bem sucedidos exemplos nessa direção é a moratória da soja, na Amazônia, que, desde 2006, põe em prática um sistema em que as empresas participantes não compram o produto vindo de áreas recentemente desmatadas. Não é possível conhecer ainda os efeitos do caso mais recente do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável, mas não é irrelevante assinalar que os compromissos inicialmente adotados tiveram como ponto de partida o consenso de que a produção economicamente viável de carne no Brasil pode ser levada adiante sem que o desmatamento prossiga.
A pesquisa recente sobre esse tema mostra ao menos quatro traços importantes dessas novas formas de organização dos mercados. Em primeiro lugar, mesmo que inspiradas inicialmente em produtos de nicho (agricultura orgânica, café e cacau de comércio justo – “fair trade”, entre outros), compromissos em torno de padrões produtivos entram de forma impressionante no mundo dos produtos indiferenciados, das commodities: o respeito aos parâmetros da Better Sugar Initiative, por exemplo, deverá ser uma condição decisiva para que o etanol brasileiro possa fazer parte da descarbonização da matriz energética dos transportes na União Europeia. Padrões socioambientais tendem a funcionar como parâmetros que regem o comportamento de todo um setor e não apenas como traço particular de certos produtos especiais.
O segundo traço fundamental destas novas formas de certificação é que elas tendem a atingir segmentos altamente internacionalizados: em mercados globais aumentam as chances de pressão social e os riscos empresariais de perda de reputação no caso de denúncias com alta repercussão pela mídia.
Ao mesmo tempo, como mostram os trabalhos recentes de Thierry Hommel, pesquisador francês da Fondation Nationale des Sciences Politiques, nem todas as firmas são igualmente sensíveis a essas pressões: empresas cujos ativos não são facilmente transferíveis e que contam com grandes investimentos iniciais são mais propensas ao diálogo social, como forma de afirmação diante da concorrência, do que aquelas marcadas por maior mobilidade.
Seria, no entanto, uma ambição tecnocrática imaginar que certificações pudessem chegar a um conjunto coerente e unitário dizendo de uma vez por todas quais as melhores práticas para cada setor. Exatamente por se tratar de um processo tenso e conflituoso de construção social, os indicadores de conduta socioambiental adequada são muito variados. Examinar esses parâmetros como expressão dos interesses e da força dos diferentes participantes nessas iniciativas é uma das mais férteis linhas de pesquisa nessa direção.
A quarta característica é que exatamente por se tratar cada vez menos de produtos de nicho, esses padrões socioambientais só podem operar de forma minimamente eficiente com base em interação construtiva com o Estado: que se trate da necessidade de regularizar a questão fundiária na Amazônia e na Indonésia ou do cumprimento da legislação ambiental e trabalhista, as exigências socioambientais do setor privado dificilmente podem ser cumpridas sem um aparato legislativo e um corpo administrativo estatal minimamente eficiente.
Esses temas serão discutidos num workshop internacional com a presença de pesquisadores latino-americanos, dos Estados Unidos e da França organizado pelo Núcleo de Economia Socioambiental da FEA/USP, pela Universidade do Texas, com apoio da Associação Latino-americana de Sociologia (LASA) e da Fapesp. O workshop (“Civil-Society-Led Corporate Governance in Latin America: Critical Research Issues and Opportunities for Collaboration”), acontece nos dias 30 e 31 de agosto na FEA/USP. Para outras informações, ver www.nesa.org.br/ .
*Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental, pesquisador do CNPq e da FAPESP www.abramovay.pro.br/
As condições de funcionamento dos mercados de algumas das principais commodities brasileiras transformaram-se de forma impressionante nos últimos cinco anos. Soja, biocombustíveis, madeira, carne, algodão, óleo de palma estão entre os produtos cujos mercados passam a organizar-se de forma crescente com a participação de organizações não governamentais (ONGs) em seu interior.
Além da agropecuária, o Instituto Carvão Social é uma iniciativa compulsória que controla condições de trabalho na cadeia da siderurgia. A mudança é de mão dupla: as empresas e as associações empresariais passam a procurar parâmetros de julgamento de suas atividades que vão muito além do balanço contábil ou da remuneração dos acionistas. Isso supõe a formulação de vários indicadores como o uso de materiais e energia, o balanço de emissões de gases de efeito estufa e o conhecimento dos impactos do que fazem as firmas tanto sobre a biodiversidade como sobre as populações que se encontram ao longo de suas cadeias de valor. Por outro lado, as próprias ONGs também alteram seus procedimentos. Tornam-se protagonistas de negociações diretas com o setor privado, o que exige preparação técnica e um tipo de agenda quase ausente de seu horizonte até poucos anos atrás.
Um dos resultados dessa dupla mudança nas empresas e nas ONGs são iniciativas apoiadas na participação de atores sociais variados (“multistakeholders”) em mesas redondas internacionais com a ambição de chegar a padrões socioambientais capazes de interferir de forma decisiva na governança dos mercados. Benjamin Cashore, professor da Universidade de Yale, mostra que essa “governança não estatal dirigida pelo mercado” (“non state market driven governance”) vai muito além de uma atitude ocasional e oportunista, pois cria um conjunto de normas e valores aos quais os protagonistas (empresas, ONGs, organizações de consumidores e os próprios governos) aderem de forma crescente. Forma-se uma espécie de complexo “ONGs/indústria” exprimindo um novo padrão de regulação privada transnacional.
A cadeia de demandas e de garantias embutidas na licença para operar das empresas vai muito além do que é negociado habitualmente nas cadeias de suprimento. Não se trata apenas da acusação direta a alguns setores e empresas com condutas especialmente danosas. Muito mais que isso, trata-se de organizar os mercados com base na tentativa de expor publicamente seus principais impactos socioambientais.
Um dos mais bem sucedidos exemplos nessa direção é a moratória da soja, na Amazônia, que, desde 2006, põe em prática um sistema em que as empresas participantes não compram o produto vindo de áreas recentemente desmatadas. Não é possível conhecer ainda os efeitos do caso mais recente do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável, mas não é irrelevante assinalar que os compromissos inicialmente adotados tiveram como ponto de partida o consenso de que a produção economicamente viável de carne no Brasil pode ser levada adiante sem que o desmatamento prossiga.
A pesquisa recente sobre esse tema mostra ao menos quatro traços importantes dessas novas formas de organização dos mercados. Em primeiro lugar, mesmo que inspiradas inicialmente em produtos de nicho (agricultura orgânica, café e cacau de comércio justo – “fair trade”, entre outros), compromissos em torno de padrões produtivos entram de forma impressionante no mundo dos produtos indiferenciados, das commodities: o respeito aos parâmetros da Better Sugar Initiative, por exemplo, deverá ser uma condição decisiva para que o etanol brasileiro possa fazer parte da descarbonização da matriz energética dos transportes na União Europeia. Padrões socioambientais tendem a funcionar como parâmetros que regem o comportamento de todo um setor e não apenas como traço particular de certos produtos especiais.
O segundo traço fundamental destas novas formas de certificação é que elas tendem a atingir segmentos altamente internacionalizados: em mercados globais aumentam as chances de pressão social e os riscos empresariais de perda de reputação no caso de denúncias com alta repercussão pela mídia.
Ao mesmo tempo, como mostram os trabalhos recentes de Thierry Hommel, pesquisador francês da Fondation Nationale des Sciences Politiques, nem todas as firmas são igualmente sensíveis a essas pressões: empresas cujos ativos não são facilmente transferíveis e que contam com grandes investimentos iniciais são mais propensas ao diálogo social, como forma de afirmação diante da concorrência, do que aquelas marcadas por maior mobilidade.
Seria, no entanto, uma ambição tecnocrática imaginar que certificações pudessem chegar a um conjunto coerente e unitário dizendo de uma vez por todas quais as melhores práticas para cada setor. Exatamente por se tratar de um processo tenso e conflituoso de construção social, os indicadores de conduta socioambiental adequada são muito variados. Examinar esses parâmetros como expressão dos interesses e da força dos diferentes participantes nessas iniciativas é uma das mais férteis linhas de pesquisa nessa direção.
A quarta característica é que exatamente por se tratar cada vez menos de produtos de nicho, esses padrões socioambientais só podem operar de forma minimamente eficiente com base em interação construtiva com o Estado: que se trate da necessidade de regularizar a questão fundiária na Amazônia e na Indonésia ou do cumprimento da legislação ambiental e trabalhista, as exigências socioambientais do setor privado dificilmente podem ser cumpridas sem um aparato legislativo e um corpo administrativo estatal minimamente eficiente.
Esses temas serão discutidos num workshop internacional com a presença de pesquisadores latino-americanos, dos Estados Unidos e da França organizado pelo Núcleo de Economia Socioambiental da FEA/USP, pela Universidade do Texas, com apoio da Associação Latino-americana de Sociologia (LASA) e da Fapesp. O workshop (“Civil-Society-Led Corporate Governance in Latin America: Critical Research Issues and Opportunities for Collaboration”), acontece nos dias 30 e 31 de agosto na FEA/USP. Para outras informações, ver www.nesa.org.br/ .
*Ricardo Abramovay é professor titular do departamento de Economia da FEA/USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental, pesquisador do CNPq e da FAPESP www.abramovay.pro.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário